top of page

Era um garoto chamado Lauriberto Reyes

Foto do escritor: EngD EngD

Cirilo Braga

27 de fevereiro marca os 53 anos do assassinato, em 1972, do são-carlense Lauriberto José Reyes, de 26 anos; estudante da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e militante da Aliança Libertadora Nacional e do Movimento de Libertação Popular, por agentes da repressão do regime militar.


Um contemporâneo do estudante são-carlense Lauriberto Reyes, morto pela ditadura militar, me contou que numa das vindas dele a São Carlos naqueles anos de chumbo, encontrou-se com amigos no centro da cidade e anunciou em alto e bom som: “No próximo dia 4 de novembro vou fazer uma homenagem a São Carlos. Assistam na TV”. Era outubro de 1969 e ele então já participava dos movimentos de resistência ao regime de governo instaurado cinco anos antes. Usava o codinome Vinícius, mas entre amigos locais, continuava a ser o Lauri. O sujeito boa praça que tocava violão e fazia serenatas, que cursou o primário no Instituto de Educação “Dr.Alvaro Guião” e o ginásio no Colégio Diocesano, deu duro nos estudos para ingressar na Escola Politécnica e foi morar no CRUSP (Conjunto Residencial da USP) onde rapidamente virou diretor cultural.


Tinha deixado para trás os tempos do colaborador assíduo do jornal “O Diocesano” com seus artigos indignados com a injustiça social e já navegava nas águas turbulentas da utopia de tantos jovens daqueles anos 1960. A organização do célebre XXX Congresso da UNE em Ibiúna já estava em seu currículo de combates nas fileiras da organização Aliança Libertadora Nacional (ALN) e depois do Movimento de Libertação Popular (Molipo).


Os amigos de São Carlos certamente se arrepiavam à simples menção destas siglas e não entenderam, num primeiro momento, o recado enigmático dado no interior de um bar da Avenida – a explicação só viria no feriado de aniversário de sua terra natal, quando os noticiários da TV trouxeram o relato do sequestro de um Boeing da Varig que partiu de Buenos Aires para Santiago e foi interceptado por um grupo que incluía nove brasileiros que viviam em Montevidéu fugiam para Havana – entre eles Lauri.


Em Cuba, faria outros amigos que talvez o definissem melhor que os conterrâneos de São Carlos, porque lá – como me disse um deles com quem tive a oportunidade de conversar tempos atrás – Lauri incorporava o personagem da canção que dizia: “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones/Girava o mundo sempre a cantar as coisas lindas da América/Não era belo, mas mesmo assim havia mil garotas a fim”.


Tinha alma de estudante e estava sintonizado com o pensamento dos estudantes diante de um cenário em que liberdade era muito mais que uma palavra de ordem, se convertia mesmo num condição para existir. Talvez fosse essa a centelha que transformou o menino pacato no guerrilheiro que optou pela clandestinidade, movendo-se entre codinomes com os quais escapava do cerco militar e ia ao encontro de si mesmo.


As letras de suas canções explicam algo sobre aquele instante vivenciado pelo jovem de vinte e poucos anos (ele nascera em 1945). Em “Modinha”: “Mesmo a saudade não encontra mais abrigo/o que traz é tão antigo quanto um desejo de paz/Dia amor/mostra um caminho a tomar/que a vida tem valor/quando é estrada e não lugar/Que o mundo não existe só pra dois/Escuta a voz é todo um povo a chamar/eu vou partir/ Se o teu caminho é igual vem junto a mim/passou o tempo de esperar/se vai ficar lhe deixo mais que essa modinha/deixo o guia, o norte, a linha pro teu dia encontrar”. Em “Torrão”: A minha terra tem areia branca/ bola de meia em campo verdinho/tem molecada correndo/tem moça sorrindo/tem sol/aquela estrela que eu vejo agora/se me distraio é a mesma de outrora/olho o casal de namorados/um dizendo, outro calado ouvindo feliz, quem sabe, os mesmos projetos que eu fiz/ pras moças que eu quis/ A minha terra tem um povo triste/não fosse embora talvez nunca visse/O que se esconde no dia (tem Zé e Maria)/Sem sol/E hoje que eu volto por outras estradas/Já não me importam velhas namoradas/Vim procurar outra gente/mudar o presente/Eu vim desta vez, companheiro/juntar o que eu tenho de novo/Nas lutas do povo”.


Aqueles amigos do bar – que o viram pela última vez no velório de seu pai sob escolta de um forte aparato militar - não conheciam os versos de suas canções; apenas passariam nos anos seguintes a ouvir como lendas as histórias de suas batalhas, até que se lançasse um pouco de luz sobre aquele tempo.


No dia 27 de fevereiro de 1972 os noticiários da TV informaram sobre sua morte. No dia seguinte, todos os jornais publicaram o mesmo texto sobre o fato. Lauri tombou fuzilado em São Paulo por oficiais do DOI-CODI numa ação em que um colega dele também foi morto. Um amigo são-carlense - que estava no bar em 1969 – notou que o corpo de Lauri crivado de balas tinha as pontas dos dedos escurecidas.


No final da missa de corpo presente ouviu-se o hino religioso que dizia: “Prova de amor maior não há/que doar a vida pelo irmão”.


Faltava ainda muito tempo para que o estudante que mergulhou na utopia até as últimas consequências se tornasse nome de praça na cidade que “homenageou” num terrível e distante dezembro.


---x---


A Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou o caso e considerou “uma fraude a versão oficial divulgada, que atestava a existência de confronto”. Segundo a CNV, Reyes “foi morto em uma emboscada promovida por agentes do DOI-CODI/SP”.


Lauri é tema de um filme biográfico produzido por Beto Novaes e lançado em 2023. Em São Carlos, onde foi sepultado no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, seu nome foi atribuído a uma praça no bairro Cidade Jardim e a um Centro da Juventude, no bairro Cidade Aracy II.



Fonte: Calendário das Memórias São-Carlenses – Cirilo Braga e Leila Maria Massarão. FPMSC.


Vídeos sobre Lauri:



Comments


bottom of page