Quem matou a engenharia brasileira?
- EngD

- há 39 minutos
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Como privatizar tudo nos transformou em dependentes tecnológicos
Paulo Gala *

Nos contaram que privatizar tudo nos tornaria um país rico e desenvolvido.
Três décadas depois, a renda per capita do Brasil até cresceu — cerca de 40% em termos reais —, mas esse avanço é modesto quando comparado a países que usaram o Estado como instrumento ativo de desenvolvimento produtivo.
E o que é pior: perdemos algo que não aparece nas estatísticas oficiais — a capacidade de coordenar estrategicamente nosso desenvolvimento produtivo. Entre 1994 e 1998, o governo Fernando Henrique privatizou 70 empresas federais e 55 estaduais, arrecadando cerca de 105 bilhões de dólares.
Parece muito dinheiro, mas o contexto era de desespero fiscal, juros estratosféricos (chegando a 45% ao ano na Selic) e necessidade urgente de atrair dólares para segurar o câmbio. Vendemos patrimônio público não por estratégia de desenvolvimento, mas por emergência cambial.
E no processo, destruímos muito mais do que empresas.
Então hoje vou mostrar exatamente o que o Brasil perdeu com as privatizações dos anos 90 — e por que isso explica boa parte da nossa estagnação atual.
Vamos aos fatos.
As empresas foram vendidas no pior momento possível.
O timing das privatizações foi desastroso.
O governo investiu 28 bilhões de dólares nas estatais nos anos que antecederam as vendas, mas arrecadou apenas 16 bilhões com as privatizações — isso mesmo, menos da metade do que havia sido investido. Pior: boa parte da expansão da oferta de telefonia nos anos 90 foi feita com dinheiro público, pouco antes de o sistema ser privatizado.
Ou seja, o Estado bancou a modernização e entregou o ativo valorizado por preço de banana.
A Vale do Rio Doce, por exemplo, foi vendida em 1997 por cerca de 3,3 bilhões de dólares.
Apenas no lucro líquido do primeiro ano após a privatização, a empresa já valia mais de 10 Vales. O minério de ferro estava em baixa nos anos 90, o que depreciou brutalmente o valor dos ativos da Vale. Mas poucos anos depois, o preço do minério disparou para patamares históricos. Hoje a Vale vale cerca de 200 bilhões de dólares.
A lógica econômica era clara: vender ativos estratégicos quando seus preços estavam no fundo do poço não era estratégia — era queima de patrimônio.
Centros de P&D foram desativados e engenharia nacional foi desmontada.
O que ninguém te conta sobre privatização é que estatais brasileiras não eram apenas “empresas ineficientes que davam prejuízo”.
Muitas delas funcionavam como centros de inovação tecnológica e articulação de cadeias produtivas. A Telebras, por exemplo, mantinha um dos mais avançados centros de pesquisa em telecomunicações da América Latina.
Esse centro foi praticamente desativado após a privatização.
As empresas multinacionais que compraram o sistema de telecom brasileiro tinham seus departamentos de P&D nas matrizes — não havia interesse em manter pesquisa e desenvolvimento no Brasil.
A Cobrasma, uma estatal que produzia equipamentos ferroviários e tinha potencial para fabricar turbinas, foi vendida e desmontada.
Esse é exatamente o tipo de empresa que a Coreia do Sul usou para se tornar potência industrial — o governo coreano bombeou investimento nessas companhias até que virassem campeãs mundiais.
Nós simplesmente vendemos e deixamos morrer.
O impacto disso foi brutal: grandes empresas “exportaram” seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento, escritórios de engenharia reduziram drasticamente seus quadros, e iniciativas como o Centro de Pesquisas da Telebras foram desativadas.
Cadeias produtivas inteiras foram destruídas.
Privatizar não é apenas trocar o dono de uma empresa.
É desarticular todo um ecossistema produtivo. Estatais funcionavam como âncoras de demanda para fornecedores locais, geravam externalidades positivas para o setor privado e eram vetores de aprendizado tecnológico.
Quando você desmonta isso, quebra a cadeia inteira. Um exemplo dramático: a cidade de Teofilândia, na Bahia, que dependia economicamente da Vale do Rio Doce.
Quando a empresa foi privatizada, veio uma onda de demissões e terceirizações. A renda local despencou, fornecedores quebraram e a cidade virou praticamente uma cidade fantasma.
Esse padrão se repetiu país afora.
A desindustrialização brasileira nas últimas décadas não foi apenas resultado de câmbio valorizado ou abertura comercial malfeita — foi também consequência direta da destruição de cadeias produtivas que tinham as estatais como eixo articulador.
Dados mostram que os setores de maior intensidade tecnológica foram os que mais se desindustrializaram prematuramente.
Enquanto setores de baixa tecnologia se desindustrializaram “normalmente” (conforme esperado em economias maduras), os setores de alta e média-alta tecnologia colapsaram muito antes do que deveriam.
Perdemos capacidade de coordenação estratégica.
Talvez a perda mais grave tenha sido invisível: a capacidade do Estado de coordenar estrategicamente o desenvolvimento produtivo.
Estatais não eram apenas empresas — eram instrumentos de política industrial. Elas definiam padrões tecnológicos, articulavam fornecedores, puxavam a fronteira da inovação e criavam mercado para empresas nacionais.
Quando você privatiza sem critério estratégico, você entrega esse poder de coordenação para agentes privados cujo interesse é maximizar lucro de curto prazo, não construir capacidades tecnológicas de longo prazo.
A China entendeu isso perfeitamente.
Manteve 95 grandes empresas estatais controlando setores estratégicos, liberalizou gradualmente, atraiu investimento estrangeiro, mas nunca abriu mão da coordenação estatal. Resultado: virou potência tecnológica mundial.
A Rússia, que privatizou tudo ao estilo “terapia de choque”, viu seu PIB cair mais de 50% nos anos 90.
O Brasil tentou um meio-termo, mas na prática acabou mais próximo do modelo russo — vendeu ativos estratégicos, desarticulou cadeias e perdeu capacidade de coordenação.
A renda per capita do Brasil evoluiu muito pouco desde 1995.
Desde 1995, a renda per capita do Brasil cresceu cerca de 40% em termos reais — um avanço lento para um país que privatizou ativos estratégicos, abriu sua economia e prometeu convergência rápida com países desenvolvidos.
Se as privatizações funcionassem como prometido, o Brasil deveria ser um país rico hoje. Afinal, privatizamos praticamente tudo que dava para privatizar nos anos 90.
Mas três décadas depois, nossa renda per capita evoluiu muito pouco desde 1995.
No mesmo período, a China multiplicou sua renda per capita em termos reais por cerca de 8 vezes, combinando abertura gradual com forte coordenação estatal e manutenção de empresas estratégicas sob controle público.
A agenda econômica dos anos 90 — abertura comercial abrupta, privatização em massa, ajuste fiscal ortodoxo — já se mostrou equivocada.
Não é à toa que até defensores das privatizações, como o ex-ministro Gustavo Franco, disseram na época que vendemos “verdadeiras sucatas para estrangeiros”.
A pergunta que fica é: se eram sucatas, por que vendemos?
E se não eram, por que entregamos de bandeja empresas estratégicas que poderiam ter sido a base de um projeto de desenvolvimento?
A conta que não fecha.
O custo real das privatizações vai muito além dos 105 bilhões arrecadados.
Perdemos centros de pesquisa, desmontamos engenharia nacional, quebramos cadeias produtivas, entregamos coordenação estratégica e ficamos tecnologicamente dependentes.
Hoje importamos componentes tecnológicos que poderíamos produzir, pagamos royalties por tecnologias que poderíamos ter desenvolvido e somos reféns de decisões tomadas em matrizes estrangeiras.
Privatizar tudo não nos fez ricos.
Nos fez crescer pouco, perder capacidades estratégicas e ficar dependentes — num mundo em que quem coordena tecnologia e indústria avança, e quem abdica disso fica para trás.
P.S. — “Mas Paulo, você é contra toda privatização? Quer estatizar tudo de novo?”
Não. A questão nunca foi privatizar ou não — foi como, quando e o quê privatizar. Nos nossos cursos de História Econômica do Brasil, Brasil Uma Economia que Não Aprende, Milagre da China, Coreia do Sul e Milagre Asiático e Ascenção e Queda do Império Americano mostramos que países desenvolvidos privatizaram empresas depois de usá-las como plataformas de aprendizado tecnológico. A Coreia do Sul manteve controle estratégico até suas empresas virarem campeãs globais. O Brasil vendeu a Vale quando o minério estava no fundo do poço e desmontou a Cobrasma antes de desenvolver capacidade industrial. Você vai aprender a diferença entre privatização estratégica e queima de patrimônio — e por que isso importa até hoje.
Graduado em Economia pela FEA-USP | Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo | Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY | Autor com +10,000 cópias de livros vendidas | Geriu carteiras de +R$ 3,000,000,000 | Professor na FGV/SP há 20 anos.
Publicado originalmente em Radar do Desenvolvimento - Paulo Gala em 22/12/2025





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