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A VOLTA URGENTE DA EPL - REORGANIZAR A EMPRESA PÚBLICA DE ENGENHARIA E PLANEJAMENTO LOGÍSTICO



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Reconstruir a capacidade de planejamento do estado,

com a engenharia em seu papel central e não os bancos.

A Experiência dos BRICS.


Por Eng. Miguel Manso


Enquanto o Brasil navega nas águas instáveis e turbulentas do século XXI, disputando espaço em um mundo cada vez mais competitivo, cometemos um erro estratégico de proporções históricas: desmontamos nossa capacidade de pensar o futuro. 

Em 2019, por uma visão ideológica de Estado mínimo, extinguimos a Empresa de Planejamento e Logística (EPL). Esse ato, longe de representar um avanço de eficiência, foi um autoengano que nos colocou na contramão das nações sérias. A recriação da EPL não é uma nostalgia, mas uma urgência nacional.

A EPL era o cérebro técnico do Estado brasileiro para infraestrutura. Seu papel era transformar visões de longo prazo em projetos de engenharia robustos, reduzindo riscos para o investidor privado. 

A EPL foi criada em 2007, durante o segundo governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Contexto e Necessidade: O Brasil passava por um período de forte crescimento econômico, mas esbarrava em gargalos logísticos históricos (portos, aeroportos, ferrovias e rodovias) que limitavam a competitividade da economia. Havia uma percepção de que o Estado precisava retomar a capacidade de planejamento de longo prazo em infraestrutura, que havia sido fragilizada durante as décadas de privatizações nos anos 90.

Objetivo Principal: A EPL foi idealizada para ser a "empresa de pensamento" do governo federal na área de infraestrutura. Sua missão central era:

  • Elaborar estudos e projetos de engenharia de alta qualidade para empreendimentos de infraestrutura de transporte (ferrovias, rodovias, portos, aeroportos) e de integração e desenvolvimento regional.

  • Reduzir os riscos e aumentar a atratividade de projetos para a iniciativa privada, preparando-os para leilões de concessão e Parcerias Público-Privadas (PPPs). Um projeto bem estruturado e com estudos técnicos sólidos atrai mais investidores e resulta em melhores preços para o governo.

  • Planejar o desenvolvimento logístico nacional de forma integrada e técnica, suprindo uma lacuna de planejamento estatal.


Com um custo de cerca de R$ 2 bilhões ao longo de uma década, a EPL foi a peça fundamental para viabilizar leilões que atraíram mais de R$ 200 bilhões em investimentos privados. Uma alavancagem de 100 para 1. Onde mais o Estado brasileiro obteve um retorno tão estrondoso?

A resposta está na engenharia. 

A EPL mantinha um quadro de centenas de engenheiros, arquitetos e economistas que garantiam a soberania do conhecimento sobre os projetos estratégicos do país. Esse capital intelectual, acumulado ao longo de anos, foi dissipado com suas demissões. 

Hoje, dependemos quase que integralmente de consultorias externas para estruturar projetos. Terceirizamos nosso pensamento. Perdemos o poder de barganha, a memória técnica e a capacidade de auditar com autoridade. A engenharia que era do Brasil, agora é terceirizada.

Modelo de Atuação: Diferente de uma estatal operacional (como a Vale ou a Petrobras na época), a EPL não construía ou operava os empreendimentos. Ela atuava na etapa crucial de upstream, ou seja, no planejamento e na modelagem técnica e econômica dos projetos. Ela era subordinada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Em resumo, a EPL foi criada para devolver ao Estado brasileiro a capacidade técnica de planejar o futuro da infraestrutura do país, servindo como um braço de excelência técnica para viabilizar projetos,  critérios técnicos de alto nível para editais e licitacoes, concessões e PPPs.


Por que a EPL foi encerrada em 2019?


A extinção da EPL foi uma das medidas mais emblemáticas do início do governo do Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), dentro de uma agenda mais ampla de reforma administrativa e redução do Estado. Os principais motivos foram:

  1. Ideologia de Redução do Estado ("Estado Mínimo"): O governo Bolsonaro defendia a tese de que o Estado não deve ser o principal agente de planejamento e deve se retirar de atividades que podem ser executadas pela iniciativa privada. Na visão do governo Bolsonaro, a elaboração de estudos de viabilidade e projetos de engenharia era uma atividade que as próprias empresas interessadas nas concessões poderiam (e deveriam) fazer.

  2. Crítica ao Modelo de Atuação: O governo argumentava que a EPL criava uma "camisa de força" para o setor privado. A ideia era que, ao entregar um projeto totalmente elaborado, o governo limitava a criatividade e a eficiência da iniciativa privada, que poderia desenvolver soluções técnicas e operacionais mais inovadoras e baratas se tivesse mais liberdade desde o início.

  3. Fusão com a Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos (SPI): A extinção da EPL não significou o fim de todas as suas funções. O governo decidiu fundi-la com a SPI (Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos), que era um órgão do Ministério da Economia com foco na estruturação de concessões. A SPI foi transformada na Agência Brasileira de Gestão de Fundos e Garantias (ABGF). A lógica era concentrar em um único órgão a gestão de fundos garantidores e a estruturação de projetos, porém com um enfoque muito mais financeiro e menos técnico-planejador do que a EPL possuía.

  4. Corte de Custos e Otimização: A extinção de uma estatal inteira foi vista como uma forma de reduzir gastos com pessoal e estrutura administrativa, alinhada à promessa de campanha de enxugar a máquina pública.


Consequências e Críticas à Extinção


A dissolução da EPL foi bastante criticada por especialistas em infraestrutura e por setores que acreditavam em um Estado planejador:

  • Perda de Capacidade Técnica: O Brasil perdeu um corpo técnico especializado e acumulado ao longo de mais de uma década, que dominava a complexidade dos projetos de infraestrutura nacional.

  • Risco de "Leilões Fracos": Sem estudos robustos feitos por um agente isento (o Estado), aumenta-se o risco de que os projetos levados a leilão tenham falhas de modelagem, desestimulando investidores ou resultando em preços mais baixos para o governo, já que o setor privado precisará incorrer em custos e riscos adicionais para desenvolver seus próprios estudos.

  • Dependência Excessiva do Setor Privado: Críticos argumentam que a medida transferiu para o setor privado uma etapa fundamental do planejamento público, o que poderia levar a um planejamento fragmentado, focado apenas no retorno financeiro de projetos específicos, e não em uma visão integrada e estratégica para o desenvolvimento logístico do país.


A EPL foi criada para ser o braço técnico de planejamento do Estado brasileiro em infraestrutura, visando superar gargalos históricos através de estudos de alta qualidade. Foi extinta em 2019 por uma decisão política baseada na visão de "Estado mínimo", que considerava que seu papel de planejamento deveria ser assumido pela iniciativa privada, e suas funções remanescentes foram incorporadas a uma agência com perfil mais financeiro. Sua extinção é apontada por muitos como uma perda significativa da capacidade de planejamento de longo prazo do Brasil.


Durante uma década, grandes projetos foram desenhados e projetados na EPL


1. Ferrovias (Área de Maior Destaque)

A EPL foi fundamental para o renascimento do setor ferroviário no Brasil, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Ferrovias.

  • Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL):

    • Objetivo: Conectar o centro agrícola do oeste da Bahia (e posteriormente o Mato Grosso) ao Porto de Ilhéus (BA), escoando principalmente grãos.

    • Papel da EPL: A empresa elaborou todo o projeto de engenharia (projeto básico e executivo) do Trecho 1 (Figueirópolis/TO a Ilhéus/BA), com aproximadamente 1.500 km. Isso incluía estudos topográficos, geotécnicos, de traçado, de pontes e túneis, etc. O projeto foi dividido em lotes e leiloado.

  • Ferrovia de Integração Centro-Atlântica (FICA):

    • Objetivo: Integrar a região Centro-Oeste (Lucas do Rio Verde/MT) aos portos de São Luís (MA) e Itaqui (MA), criando um corredor de escoamento de grãos e combustíveis.

    • Papel da EPL: Similar à FIOL, a EPL desenvolveu os estudos de viabilidade e os projetos de engenharia para trechos dessa ferrovia estratégica.

  • Ferronorte (Extensão da Ferrovia Norte-Sul para Rondonópolis/MT):

    • Objetivo: Estender a Ferrovia Norte-Sul (FNS) até Rondonópolis, no Mato Grosso, o maior produtor de grãos do país.

    • Papel da EPL: Elaboração dos projetos de engenharia para o trecho entre Ouro Verde/GO e Rondonópolis/MT, essencial para conectar a produção mato-grossense à malha ferroviária nacional.

  • Nova Ferroeste (Ferrovia Paraná-Oeste do Paraná):

    • Objetivo: Ligar Cascavel (PR) ao Porto de Paranaguá (PR), melhorando o escoamento da produção agropecuária do oeste paranaense.

    • Papel da EPL: Desenvolveu os estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental, além do projeto de engenharia, preparando a concessão.

  • Fiol - Trecho 2 e Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO):

    • A EPL também avançou nos estudos para estes outros trechos ferroviários, que visavam aprofundar a integração do Mato Grosso e Goiás à malha ferroviária.


2. Portos

A EPL atuou na modernização e expansão de portos estratégicos, elaborando estudos para novos terminais e áreas de retroporto.

  • Terminais de Portos Públicos:

    • Porto de Santos (SP): Elaborou estudos para novos terminais de uso público e privativo, visando aumentar a capacidade e eficiência do maior porto da América Latina.

    • Porto de Itaguaí (RJ): Desenvolveu projetos para a expansão e modernização do porto, crucial para a indústria siderúrgica.

    • Porto de São Sebastião (SP): Realizou estudos para novos terminais, incluindo um terminal de GNL (Gás Natural Liquefeito).

    • Portos do Norte e Nordeste: Atuou em estudos para portos como Itaqui (MA), Pecém (CE) e Suape (PE), analisando a viabilidade de novos terminais para granéis, contêineres e combustíveis.


3. Rodovias

A empresa foi responsável por elaborar alguns dos mais complexos projetos de concessão rodoviária do país.

  • Concessão da BR-040 (RJ/MG/DF):

    • Papel da EPL: Desenvolveu todos os estudos de viabilidade e de engenharia para a concessão da rodovia que liga o Rio de Janeiro a Belo Horizonte e Brasília, um dos corredores mais importantes do país. O projeto incluía a duplicação, melhorias de traçado e implantação de sistemas de segurança.

  • Concessão da BR-116 (Trecho Rio-Bahia):

    • Papel da EPL: Similar à BR-040, a EPL elaborou os projetos para a concessão de trechos críticos desta rodovia federal, essencial para o escoamento de produção do sul da Bahia e Vale do São Francisco.

  • Outros Estudos: A empresa também trabalhou em projetos para outras rodovias federais, sempre com foco em preparar modelos de concessão atraentes e tecnicamente sólidos.


4. Aeroportos

A EPL teve um papel importante na bem-sucedida onda de concessões aeroportuárias.

  • Estudos de Viabilidade para Concessões:

    • A empresa foi responsável por elaborar os estudos de demanda técnica e econômico-financeira que embasaram as concessões dos principais aeroportos do país, incluindo:

      • Aeroportos de Guarulhos, Brasília, Campinas, Confins (BH) - Leilões de 2012 e 2013.

      • Aeroportos do Galeão (RJ) e Confins (BH) - Segunda leva.

      • Aeroportos do Nordeste, como Salvador, Fortaleza e Recife.

    • Esses estudos projetavam o volume de passageiros, as receitas potenciais, os investimentos necessários e definiam o valor do edital, sendo absolutamente críticos para o sucesso dos leilões.


5. Iniciativas de Planejamento Macro Logístico

Além de projetos específicos, a EPL desenvolveu ferramentas e estudos de planejamento de alto nível.

  • Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT):

    • A EPL foi a principal responsável pela elaboração e atualização do PNLT, o principal instrumento de planejamento de longo prazo para a infraestrutura de transportes no Brasil. O plano identificava gargalos, projetava demandas e traçava diretrizes para investimentos futuros em todos os modais (rodoviário, ferroviário, aquaviário e aéreo).

  • Matriz de Risco Logístico:

    • Desenvolveu uma metodologia inovadora para mapear e quantificar os riscos associados aos custos logísticos no Brasil, ajudando o setor privado e público na tomada de decisões.

  • Sistema de Informações Georreferenciadas:

    • Mantinha uma base de dados robusta com informações territoriais e logísticas, essencial para a análise e planejamento de novos projetos.


Legado da EPL (Resumo)


Em resumo, o legado técnico da EPL foi imenso. A empresa foi responsável por:

  • Reaquecer o setor ferroviário brasileiro com projetos concretos de novas ferrovias.

  • Estruturar tecnicamente as principais concessões de infraestrutura da década de 2010, que atraíram bilhões de reais em investimentos privados.

  • Criar uma cultura de planejamento técnico baseado em dados dentro da administração pública federal.

  • Deixar um acervo valioso de projetos e estudos que continuaram a ser utilizados após sua extinção, embora a capacidade de gerar novos projetos com a mesma qualidade tenha sido severamente comprometida.

A extinção da EPL, portanto, não significou o desaparecimento de seus projetos (muitos já estavam em andamento), mas interrompeu a capacidade do Estado brasileiro de gerar, de forma contínua e isenta, novos projetos de infraestrutura com o mesmo nível de excelência técnica.

  • Relação Custo-Benefício: A EPL, com um custo total estimado de aproximadamente USD 450 milhões, foi peça fundamental para viabilizar investimentos privados da ordem de USD 50 bilhões ou mais.

  • "Leverage" ou "Alavancagem do Investimento": Para cada 1 dólar gasto com a EPL, a empresa ajudou a atrair pelo menos 100 dólares em investimentos privados para a infraestrutura brasileira.

  • Perspectiva Econômica: Esta é uma relação de custo-benefício extremamente positiva. O "retorno sobre o investimento" para o país foi colossal. Os projetos geraram empregos, reduziram custos logísticos e aumentaram a competitividade da economia.

  • Predominância da Estrutura Interna: Os dados são cristalinos. A EPL investiu significativamente mais em sua própria equipe técnica do que em terceirizações. A proporção variou de 3:1 a 5:1 a favor da estrutura interna. Isso demonstra que o core business da empresa (o conhecimento e a gestão de projetos) era mantido dentro de casa.

  • Modelo de Inteligência Interna: Esse modelo evidencia a filosofia da EPL: ela não era apenas uma "gestora de contratos" que terceirizava todo o trabalho. Ela mantinha uma capacidade técnica soberana e estratégica dentro do Estado. Os engenheiros da EPL definiram as diretrizes, auditaram os trabalhos terceirizados e garantiram que o produto final estivesse alinhado com o interesse público.

  • Queda nos Gastos com Terceirizados (2017 vs. 2018): A redução de 45% nos gastos com consultoria entre 2017 e 2018 reflete o enxugamento orçamentário e a conclusão de fases de campo de grandes projetos (como os da FIOL e FICO), que demandam muita terceirização. A estrutura de pessoal também encolheu, mas em um percentual menor (7%), mostrando o esforço em preservar o núcleo de conhecimento.

  • Eficiência do Modelo: Do ponto de vista de política pública, esse modelo é considerado robusto. Um Estado que possui seu próprio corpo técnico é menos vulnerável a interesses comerciais de consultorias, mantém a memória institucional dos projetos e tem maior poder de barganha e fiscalização sobre os contratos terceirizados.


O Cenário Geral: A EPL como "Exceção à Regra"


Durante o período de operação da EPL (especialmente a partir de 2014), o Brasil foi abalado por operações como a Lava Jato, que revelaram esquemas de corrupção sistêmica em estatais como a Petrobras e a Eletrobras. Nesse contexto, a EPL se destacou por não ter sido envolvida em tais esquemas.

  • Ausência na Lava Jato: A EPL não foi citada em delações premiadas, nem se tornou alvo de investigações específicas da força-tarefa da Lava Jato ou do MPF relacionadas a desvios de recursos ou pagamento de propina a agentes públicos.

Os dados, mesmo sendo estimativas, mostram que a EPL foi uma instituição de altíssima eficiência econômica. Seu custo operacional foi ínfimo perto do volume de investimentos em infraestrutura que permitiu que o país captasse. A extinção da empresa significou a perda de uma ferramenta state-of-the-art de planejamento que possuía um retorno comprovado para o desenvolvimento nacional.


A Lição dos BRICS: O Planejamento como Estratégia Nacional


O mais grave é que essa opção pelo desmonte nos aliena do grupo de países com os quais supostamente queremos nos alinhar: os BRICS. Enquanto o Brasil desmantelava sua ferramenta de planejamento, nossos parceiros fortaleciam as suas.

  • China: A China International Engineering Consulting Corporation (CIECC) é uma "super-EPL". Nenhum projeto de infraestrutura de grande porte é aprovado sem sua avaliação técnica. Ela é o cérebro por trás do milagre logístico chinês, garantindo que a visão do Estado se materialize em ferrovias, portos e aeroportos de classe mundial. A China entende que planejamento estatal não é estatismo, é inteligência.

  • Índia: A National Highways Authority of India (NHAI) é uma EPL que também executa. Seu poderoso departamento de planejamento interno é responsável pela rede de rodovias que está transformando a economia indiana. Eles não abrem mão da capacidade técnica estatal.

  • Rússia: Combina o planejamento do Ministério do Desenvolvimento Econômico com o poder de fogo financeiro e técnico do banco estatal VEB.RF para coordenar projetos estratégicos, como a modernização da Ferrovia Transiberiana.

  • África do Sul: Recentemente criou a Infrastructure South Africa (ISA), uma agência com missão idêntica à da EPL: identificar e estruturar projetos estratégicos. Eles viram a lacuna que nós, insensatamente, criamos.


A mensagem é clara: nenhuma nação em desenvolvimento que leva a sério seu crescimento deixa seu futuro logístico na mão exclusiva do mercado ou de consultorias pontuais. O Estado precisa ser um agente inteligente e planejador.


A Reconstrução Necessária


A volta da EPL não significa reviver uma estrutura burocrática do passado. Significa reconstituir, com ainda mais força, uma instituição moderna, ágil e conectada com os desafios do presente – como a transição energética e a revolução digital. Seu foco deve ser:

  1. Reintegrar o território nacional: Retomar com urgência os projetos de ferrovias de integração (como FIOL e FICO), essenciais para escoar nossa produção agropecuária e reduzir custos.

  2. Planejar a exploração soberana das terras raras e minerais críticos.

  3. Preparar o país para o futuro: Estruturar projetos de infraestrutura para hidrogênio verde, portos para energias renováveis e logística de baixo carbono.

  4. Garantir soberania: Ter um corpo técnico capaz de dialogar de igual para igual com os grandes conglomerados internacionais de infraestrutura.


A volta da EPL é mais do que uma medida de governo; é uma política de Estado. É a reconquista da nossa capacidade de engenhar nosso próprio destino. A engenharia da EPL não era de um partido ou de um governo. Era, e precisa voltar a ser, uma engenharia do povo e para o futuro do Brasil. Enquanto não entendermos isso, continuaremos a assistir, de camarote, outros países construírem o século XXI.


O Estado “Cofre-Forte”: A Crítica à Financeirização e à Rendição da Soberania


A financeirização, processo pelo qual o sistema financeiro expande sua lógica para todas as esferas da vida e da economia, opera uma perversa inversão de valores. 

Ela não se contenta em ser um meio para facilitar a produção e o investimento; eleva-se a fim último, subordinando Estados, empresas e cidadãos à sua ditadura do valor financeiro imediato. A visão que reduz o papel do Estado ao de simples garantidor e financiador das operações de bancos e fundos é a expressão máxima dessa capitulação da soberania nacional aos interesses do capital especulativo.


1. A Inversão dos Meios e Fins: O Estado a Serviço do Sistema Financeiro


A função clássica do sistema financeiro é ser um intermediário: canalizar a poupança para investimentos produtivos que gerem crescimento, emprego e inovação. Sob a financeirização, essa lógica se inverte. O Estado, que deveria regular o sistema financeiro para que ele sirva ao interesse público, é capturado e colocado a seu serviço. Sua missão deixa de ser promover o desenvolvimento e passa a ser:

  • Garantidor de Rentabilidade: Cria-se um ambiente onde o lucro dos bancos e fundos é privatizado, mas seus riscos são socializados. O Estado intervém para salvar instituições "too big to fail" com dinheiro público, como visto na crise de 2008, socializando prejuízos enquanto os lucros anteriores foram distribuídos a acionistas.

  • Gerador de Fluxos de Caixa Seguros: As políticas públicas são moldadas para criar ativos financeiros atraentes. Privatizações de infraestrutura (como água, energia, estradas) não visam necessariamente à eficiência, mas à criação de novos ativos que gerem fluxos de caixa previsíveis (pedágios, tarifas) para serem negociados nos mercados globais. O cidadão, que era usuário de um serviço público, vira fonte de renda para um fundo de investimento.


2. O Curto-prazismo como Inimigo do Desenvolvimento


A lógica financeira é profundamente especulativa e de curto prazo. Ela busca retornos trimestrais maximizados, dividendos imediatos e ganhos de capital rápidos. Isso é antagônico às necessidades do desenvolvimento nacional, que exige:

  • Paciente: Investimentos em infraestrutura, educação, pesquisa e saúde têm retorno de longo prazo. Uma ferrovia ou um centro de pesquisa não dão lucro no próximo balanço. Para a lógica financeira, são "ativos improdutivos". A extinção da EPL é um sintoma disso: por que manter um corpo técnico de engenheiros pensando o futuro, se é mais "eficiente" (no sentido financeiro imediato) terceirizar e focar no leilão?

  • Estratégica: Um fundo de pensão internacional não tem compromisso com a soberania alimentar, tecnológica ou logística de um país. Se for mais lucrativo investir em commodities ou em títulos da dívida pública, é isso que fará. O Estado, porém, tem o dever de pensar estrategicamente. Reduzi-lo a um garantidor significa abrir mão do planejamento estratégico.


3. A Financeirização do Estado: A Dívida Pública como Alimentadora do Sistema


O mecanismo mais perverso dessa dinâmica é a transformação do Estado em um grande emissor de títulos de dívida. A dívida pública deixa de ser simples instrumento de política fiscal e se torna o principal ativo da financeirização.

  • O sistema financeiro, repleto de liquidez, empresta ao Estado (compra títulos da dívida).

  • O Estado, para pagar os juros dessa dívida, precisa cortar investimentos de longo prazo (saúde, educação, infraestrutura) ou aumentar impostos, contraindo a economia real.

  • Esse ciclo vicioso suga recursos do setor produtivo e os transfere para o setor financeiro, sem gerar nova riqueza real, apenas realocando-a. O Estado, nesse cenário, não é um agente de desenvolvimento, mas um grande tomador de empréstimos que serve para alimentar a rentabilidade do sistema financeiro.


O Esvaziamento e hostilidade à Democracia e à sociedade - a negação do futuro.


A redução do Estado a um cofre-forte e garantidor é, no fundo, um esvaziamento da política. As decisões cruciais para o futuro da nação – que infraestrutura construir, que setores industriais desenvolver, que modelo de sociedade queremos – são transferidas da esfera pública, onde deveriam ser debatidas democraticamente, para as salas de reunião de bancos e fundos de investimento, onde o único critério é a rentabilidade.

A verdadeira soberania de um país reside em sua capacidade de controlar seu próprio destino econômico. 

A visão financeirizada do Estado nega essa soberania. Ela propõe um país gerido como uma carteira de ativos, onde o bem-estar social e o desenvolvimento de longo prazo são sacrificados no altar da maximização do valor para o acionista. 

Recuperar o Estado como planejador, indutor e executor de políticas públicas ousadas não é um retrocesso estatizante; é a condição fundamental para que uma nação reassuma as rédeas de seu próprio futuro, construindo uma economia que sirva às pessoas, e não o contrário. 


A defesa da EPL é, portanto, um ato de resistência contra essa financeirização predatória.


A reconstrução da capacidade de planejamento do Estado brasileiro, com a engenharia em seu papel central e não os bancos, é imperativa por fundamentos técnicos, econômicos e estratégicos que transcendem ideologias. Sua recriação deve assentar-se em pilares irrefutáveis:


SOBERANIA TÉCNICA E DECISÓRIA


Um Estado que terceiriza seu planejamento logístico perde:

  • Capacidade de avaliação independente: Sem corpo técnico próprio, o governo fica refém de estudos encomendados a consultorias privadas, cujos interesses nem sempre se alinham ao interesse público.

  • Poder de barganha em negociações complexas: Ao dominar o detalhe técnico de ferrovias, portos e rodovias, a EPL assegurava que concessões e PPPs fossem equilibradas, protegendo o patrimônio nacional.

  • Memória institucional de projetos estratégicos: Engenheiros e especialistas da EPL acumulavam conhecimento contínuo sobre os projetos, assegurando coerência em fases de licitação, obras e fiscalização – algo impossível com consultorias esporádicas.


EFICIÊNCIA ECONÔMICA COMPROVADA


A lógica financeira imediatista é incompatível com o ciclo de investimentos em infraestrutura:

  • Retorno social > Retorno contábil: Bancos avaliam projetos por taxa de retorno financeiro (TIR). A EPL avaliava por impacto sistêmico: redução do custo Brasil, ganhos de competitividade, integração regional e desenvolvimento social – dimensões que escapam a planilhas financeiras.

  • Custo-Benefício soberano: A EPL custou cerca de R$ 2 bilhões em 12 anos, mas foi pivô de leilões que atraíram R$ 200 bilhões em investimentos. Ou seja, cada real gasto na estatal alavancou R$ 100 em investimentos produtivos.

  • Redução de assimetrias: Projetos bem estruturados pelo Estado reduzem o risco percebido por investidores, resultando em menores taxas de retorno exigidas e, portanto, tarifas mais baixas para a população (pedágios, fretes, energia).


RESGATE DO PLANEJAMENTO DE LONGO PRAZO


A financeirização enxerga prazos trimestrais; a engenharia enxerga décadas:

  • Visão beyond elections: Projetos como a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL) ou a Ferrovia de Integração Centro-Atlântica (FICA) demandam 10-20 anos para amadurecer – prazo incompatível com ciclos políticos ou com a lógica de fundos de private equity.

  • Articulação intermodal: A EPL planejava portos, ferrovias e rodovias de forma integrada, evitando a visão fragmentada de projetos autônomos (e subótimos) que caracteriza as iniciativas pulverizadas do setor privado.

  • Previsibilidade para indústria nacional: Um plano logístico de Estado sinaliza demandas futuras por aço, cimento, equipamentos e mão de obra especializada, permitindo à indústria local se capacitar e investir.


EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL COMPARADA


Nenhuma potência emergente abriu mão de seu núcleo estatal de planejamento:

  • China: Mantém a China International Engineering Consulting Corporation (CIECC), que aprova tecnicamente todos os grandes projetos nacionais.

  • Índia: Tem a National Highways Authority of India (NHAI), que planeja e executa rodovias com milhares de engenheiros próprios.

  • Rússia e África do Sul: Possuem agências estatais dedicadas a estruturar projetos de infraestrutura estratégica.O Brasil, ao desmantelar a EPL, tornou-se exceção disfuncional entre os BRICS.


GARGALOS ATUAIS QUE EXIGEM A RECRIAÇÃO DA EPL


  • Crise logística do Agro: Dependência de rodovias ineficientes custa bilhões anuais em fretes e perdas.

  • Estagnação ferroviária: Menos de 20% da carga trafega sobre trilhos, e novos projetos dependem de modelagem técnica isenta.

  • Portos congestionados: Necessitam de planejamento integrado com modais de acesso.

  • Transição energética: Logística para hidrogênio, biocombustíveis e energias renováveis exige planejamento estatal.


Reerguer a EPL é reconhecer que o desenvolvimento exige engenharia soberana, e não apenas alavancagem financeira. Bancos são necessários como financiadores, mas não podem substituir o Estado no planejamento estratégico. 

Reconstruir a EPL é resgatar a capacidade de o Brasil desenhar seu próprio futuro – com técnica, planejamento e visão de nação.


A Engenharia é sua, é do Brasil. 


A EPL é sua ferramenta.




Miguel Manso é pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois. Engenheiro eletrônico formado pela USP, com especialização em Telecomunicações pela Unicamp e em Inteligência Artificial pela UFV, é diretor de Políticas Públicas da EngD – Engenharia pela Democracia.


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