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O que está em jogo no saneamento básico?

Atualizado: 2 de fev. de 2023

Por Amauri Pollachi



Há duas manifestações públicas do presidente Lula que devem (ou deveriam) nortear as ações do governo federal em saneamento básico. A primeira, no discurso de posse, de que “a prioridade do país é combater a inaceitável desigualdade social, que se agravou nos últimos anos.” A segunda, em entrevista à TVE do Ceará durante a campanha, que “universalizar água e esgoto é responsabilidade do Estado brasileiro e que empresários privados não conseguirão realizá-la.”


Também está no Programa da ampla coligação partidária da chapa Lula-Alckmin a diretriz nº 74: “garantir o direito à água e ao saneamento, por meio do reconhecimento da responsabilidade das esferas administrativas federal, estaduais e municipais na universalização dos serviços de saneamento básico à população brasileira e garantir a atuação das entidades públicas e das empresas estatais na prestação dos serviços de saneamento básico”.


Desde os primeiros movimentos do governo de transição, há uma inédita sucessão de artigos, entrevistas e matérias jornalísticas na mídia tradicional cujo teor é, nitidamente, de ataque a qualquer alteração de orientação legal, organizacional, administrativa ou financeira que possa afetar a forma finalística de prestação de serviços de saneamento básico.


Observe que o saneamento básico objeto dessa polêmica pública está circunscrito aos componentes de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Não há qualquer preocupação em polemizar sobre os outros dois componentes do saneamento básico definidos na legislação: resíduos sólidos e domiciliares urbanos e drenagem de águas pluviais urbanas.


O foco está sobre a prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário devido à possibilidade de garantir ampla realização de ganhos de capital durante longo prazo, assentada em base monopolista territorial. Esse ganho de capital é especialmente mais atraente se a área delimitada para prestação de serviços contiver expressiva quantidade de clientes consolidada, concentrada e de melhor condição socioeconômica.


Aqueles que defendem a petrificação das bases legais e de gestão instituídas pelo governo Bolsonaro afirmam que, desse modo, serão resolvidos com a gestão privada: (i) o déficit de atendimento para 35 milhões de pessoas em água e 100 milhões em esgoto; (ii) a eficiência dos serviços; e (iii) as amarras dos entes estatais, como a Lei de Licitações e os concursos públicos.


Contudo, o real temor do “mercado”, de “especialistas” e de “executivos do saneamento” é que as regras – que desde 2020 lhes são extremamente favoráveis para a realização de ganhos em menor prazo possível – sejam modificadas de forma a permitir que a prestação de serviços seja também exercida por entidades públicas, como é facultado constitucionalmente aos entes federativos.


As alterações promovidas em 2020 no marco legal de saneamento de 2007, bem como os decretos e as normas subsequentes, na prática inviabilizam a prestação pública dos serviços de saneamento e escancaram portas ruma à única direção de privatização e de financeirização das águas. Aliás, um rumo que está em absoluta contramão ao movimento mundial de reestatização dos serviços de água e esgotos.

A polêmica pública iniciou-se com a possibilidade de revogação dos três decretos presidenciais derivados da lei de 2020 (Decretos nº 10.588/2020, nº 10.710/2021 e nº 11,030/2022), todos tecnicamente falhos, com um conteúdo discriminatório em relação aos prestadores de serviços públicos estaduais e municipais e com dispositivos que abrangem aspectos não previstos naquela lei. O GT Cidades indicou que a revogação desses decretos é urgente, pois essencial para destravar investimentos públicos e fortalecer entidades reguladoras municipais e regionais. Por óbvio, um novo decreto viria a substitui-los.


O segundo movimento do bombardeio midiático concentra-se na proposta do GT Cidades, de que as funções de apoio à regulação do saneamento básico sejam devolvidas para a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades – SNSA, e, portanto, saiam da Agência Nacional de Águas – ANA. Essa proposta foi inserida na MP nº 1.154, de reorganização do governo federal, contudo está imperfeita, pois não contemplou os artigos 4º-A e 4º-B da Lei da ANA e as menções às normas de referência da ANA na Lei 11.445/2007.

A forte reação provocou declarações de integrantes do governo federal de que tais alterações seriam retiradas. Contudo a alteração de subordinação da ANA, agora sob o MMA, será mantida.


Mas, por qual motivo a regulação do saneamento sob tutela da ANA é tão cara ao mercado privado? A ANA não pode nem deve exercer função de regulação no saneamento básico, ao contrário do que tem afirmado a mídia de forma distorcida, pois a titularidade dos serviços de saneamento é municipal. A ANA exerce uma atribuição que até 2020 era da SNSA: apoiar Estados e Municípios para que tenham bons reguladores. Contudo, a ANA tem desempenhado esse papel de forma amplamente favorável às empresas privadas editando normas que praticamente obrigam à privatização. Um exemplo é a proposta de norma para indenizações no término dos contratos colocada em consulta pública, em que o prestador privado terá direito à indenização maior e mais abrangente do que a prevista para o prestador público. Essa discriminação é inadmissível e injustificável.


A atual direção da ANA não possui formação técnica adequada para regular as águas – função para a qual foi criada – tampouco o saneamento básico. Quase todos os seus dirigentes são egressos do extinto Ministério da Economia, e a gestão está abrigando ex-funcionários do Palácio do Planalto e de Ministérios para atuar na regulação de água e esgotos sem qualquer qualificação profissional nessa temática (por exemplo, a portaria de nomeação do Coordenador da COAES em http://www.in.gov.br/web/dou/-/portarias-ana-de-3-de-janeiro-de-2023-456116731, que não foi adiante graças à não liberação do funcionário pela Petrobrás).


A atuação da ANA tem sido oposta a tudo que se espera de uma agência regulatória, pois é discriminatória, clientelista, ideológica e cooptada pelo mercado privado. Também não é neutra, visto a comemoração de seus dirigentes no evento de privatização da estatal de saneamento gaúcha, a CORSAN. Tampouco é eficiente, pois de 72 normas propostas em 2020, elaborou apenas duas! Além disso, a condução da gestão da ANA exorbita o seu papel ao representar à PGR contra os governadores de 8 estados, pois estariam defendendo as respectivas companhias estaduais e, no entendimento da ANA, contrapondo-se à diretriz de privatização da lei de 2020.


Há que se romper a mítica barreira monolítica de uma lei inspirada no anacrônico modelo neoliberal. É preciso um amplo debate para aperfeiçoar o arcabouço legal do saneamento, principalmente em alguns pontos centrais:


1. Revisar, de imediato, os decretos regulamentadores da Lei 14.026/2020;

2. Aprovar a PEC 06/2021 que inclui, na Constituição Federal, o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais e, também, a PEC 02/2016 que insere no artigo 6º o direito social de acesso ao saneamento;

3. Rever as atribuições de apoio à regulação, quer seja na ANA, na SNSA ou em outra agência reguladora, de forma a garantir isenção, eficácia e qualificação técnica, condições hoje absolutamente descumpridas pela ANA;

4. Rever a Lei nº 11.445/2007 para, entre outros itens: (i) eliminar a outorga onerosa como instrumento para a concessão da prestação de serviços; (ii) inserir atendimento a áreas informais e rurais; (iii) prever titularidade por consórcios públicos ou convênios de cooperação entre entes federados.

5. Estabelecer um marco regulatório para saneamento rural;

6. Estruturar fontes de recursos para investimentos, eliminando o financiamento para outorgas onerosas de concessões.


Por fim, recomendo a leitura da Carta do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) ao presidente Lula, disponível em https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2022/12/Carta-Lula-FIN-assinada-.pdf, para observarmos o cumprimento dos compromissos assumidos pela ampla coligação vencedora da eleição presidencial.


Engenheiro mecânico e conselheiro da EngD, Amauri Pollachi é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, coordenador do Fórum Paulista de Comitês de Bacias Hidrográficas, conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e diretor da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp.

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